ARTÍCULO ORIGINAL
Abordagem fenomenológica do câncer do colo do útero em gestantes: aspectos da prevenção
Enfoque fenomenológico para el cáncer del cuello uterino en embarazadas: aspectos de la prevención
Phenomenological approach for cervical cancer in pregnant women: prevention aspects
Rita de Cássia Rocha MoreiraI, Regina Lúcia Mendonça LopesII, Elaine de Carvalho Santana PeñarrietaI, Ramaiana de Jesus GonzagaI, Maria Lúcia Silva ServoI, Maria Angela Alves do NascimentoI
I Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Bahia-Brasil.
IIUniversidade Federal da Bahia
RESUMO
Introdução:
O rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil é realizado
pelo exame de papanicolaou. Na gestação, faz parte da rotina do pré-natal,
porém, muitas gestantes não se sentem informadas quanto a importância
da realização desse exame.
Objetivo: compreender o sentido da prevenção do câncer do
colo do útero na ótica de gestantes.
Métodos:
fenomenológico, construído com base nas etapas metódicas heideggerianas.
Resultados: o sentido da prevenção do câncer do colo do útero
para as gestantes desvelou as possibilidades de vivenciar a ambiguidade na convivência
conjugal e a inautenticidade nas relações entre profissional de saúde
e cliente.
Conclusão:
Necessário se faz, enfrentar o desafio de reconhecer a fragilidade da cultura
do desenho biomédico para cuidar da saúde das mulheres, na perspectiva
de desenvolver um cuidado compreensivo.
Palavras chave: enfermagem; gestante; prevenção; câncer do colo do útero; filosofia.
RESUMEN
Introducción:
la detección de cáncer de cuello uterino en Brasil se realiza mediante
examen de Papanicolaou. Durante el embarazo, una parte de la rutina del prenatal.
Sin embargo, muchas mujeres embarazadas no se sienten informadas sobre la importancia
de este examen.
Objetivo:
comprender el significado de la prevención del cáncer de cuello uterino
en el punto de vista de las mujeres embarazadas.
Métodos:
fenomenológico hermenéutico, construidos sobre la base de pasos metódicos
heideggerianos.
Resultados:
el sentido de la prevención del cáncer del cuello uterino para las
mujeres embarazadas dio a conocer las posibilidades de experimentar la ambigüedad
en la vida conyugal y la falta de autenticidad en las relaciones entre profesionales
de la salud y el cliente.
Conclusión:
Hay que encarar el desafío de reconocer la fragilidad de la cultura del
diseño biomédico para cuidar de la salud de las mujeres con el fin
de desarrollar una atención integral.
Palabras clave: enfermería; mujeres embarazadas; prevención; cáncer de cuello uterino; filosofía.
ABSTRACT
Introduction:
Early screening of cervical cancer in Brazil is performed by Pap smear. During
pregnancy, it is part of the prenatal routine. However, many pregnant women
do not feel informed about the importance of this test.
Objective: To understand the meaning of cervical cancer prevention from
the point of view of pregnant women.
Methods: Hermeneutic phenomenology, built on the basis of Heideggerian
methodical steps.
Results: The purpose of cervical cancer prevention for pregnant women
revealed the possibilities of experiencing the ambiguity in conjugal life and
the lack of authenticity in the relationships between health professionals and
the client.
Conclusion: The challenge of recognizing the fragility of biomedical
design culture to take care of women's health to deliver comprehensive care
must be addressed.
Keywords: Nursing; pregnant women; prevention; cervical cancer; philosophy.
INTRODUÇÃO
A limitação de estudos para a compreensão do impacto da vivência do câncer na gestação e na subjetividade de gestantes, assim como, a restrição de pesquisas sobre a temática, pode ser um alerta para a necessidade de estudos com essa abordagem para a comunidade científica e profissionais de saúde, entre eles o enfermeiro que atua em especial, na área de atenção à saúde da mulher.1
A alta incidência do câncer é o resultado direto das grandes transformações globais das últimas décadas, que alteraram a situação de saúde dos povos pela urbanização acelerada, pelos novos modos de vida e atuais padrões de consumo. Com aproximadamente 500 mil casos novos por ano no mundo, o câncer do colo do útero é o 2º tipo de câncer mais comum entre as mulheres, sendo responsável pelo óbito de, aproximadamente, 230 mil mulheres por ano.2 ,3
O surgimento do câncer do colo do útero está associado à infecção por tipos oncogênicos do Papiloma Vírus Humano ( HPV). Outros fatores de risco são o tabagismo, a baixa ingestão de vitaminas, a multiplicidade de parceiros sexuais, a iniciação sexual precoce, o uso de contraceptivos orais sem acompanhamento clínico e a coinfecção por agentes infecciosos, como o Vírus da Imunodeficiência Humano (HIV) e a Chlamydia trachomatis. 3
Mudanças associadas à gestação existem e são provocadas pela ação do estrogênio. Dentre as mais clássicas e que dificultam o exame de Papanicolau, atrasando o diagnóstico do câncer do colo do útero, tem-se o aumento significante do volume cervical que, em alguns casos, pode vir a triplicar, causando a eversão do canal endocervical, traço marcante principalmente nas primíparas. Essa eversão, exposta à acidez natural da vagina e outros fatores menos relevantes, causam modificações epiteliais intensas que, em presença do HPV, pode iniciar um processo atípico com progressão para o câncer do colo do útero.4
O pré-natal representa um momento importante na detecção precoce do câncer do colo do útero, bem como se constitui em um momento ímpar para se programar e implementar ações educativas sobre essa temática. É uma oportunidade que não se deve perder para a realização do Papanicolau, já que, a gestante tem uma maior assiduidade aos serviços de saúde.5
Portanto, o debate sobre a atenção no pré-natal deve ser ampliado para além do campo fisiológico na tentativa de compreender o sentido da prevenção do câncer do colo do útero para a gestante, pois, há evidências de que a implantação da citologia oncótica, no atendimento básico de saúde, parece preocupar-se apenas com os aspectos biológicos relacionados à saúde sexual e reprodutiva, deixando uma grande lacuna acerca dos aspectos psíquicos, emocionais e existenciais relacionados a mulher que realiza o exame.6
A fenomenologia não busca relações causais, descreve o fenômeno da experiência vivida, e, no campo da saúde existencial, a atitude de descrever a situação remete necessariamente para uma rede de pensamentos e modos éticos que valorizam a singularidade. Dessa forma, o olhar à saúde do outro passa a ter uma conotação que se permite mudar as atitudes para adequar, cada vez mais, o cuidado à saúde daquelas pessoas que são acolhidas no cotidiano profissional.7
Assim, ao atender uma mulher em pré-natal, deve-se vislumbrar a não-fragmentação e a não-coisificação da pessoa que necessita ser cuidada, uma vez essa está inserida num contexto de experiências vividas que precisam e devem ser resgatadas quando se estabelece um contato para a promoção à saúde e a prevenção de doenças. É nesse patamar de discussão que se insere a abordagem na filosofia fenomenológica para os cuidados à saúde.
Com essa abordagem, a rede de saúde, também representada por profissionais desse setor, deve buscar aperfeiçoar a procura por um corpo de conhecimentos que seja inovador e que fortaleça as informações de quem cuida e de quem é cuidado, na perspectiva de fortalecimento de saberes libertadores.7
Compreender existencialmente como a gestante vivencia essa prevenção significa abranger os seus modos de ser no cotidiano, que podem estar encobertos, velados ou ocultos pela rotina dos serviços e, sobretudo, pela atitude inautêntica das profissionais de saúde. Ela deve ser vista como ser de possibilidades, com características singulares e não como um objeto das campanhas ou das políticas públicas de saúde; e essa compreensão deve nos instigar a reflexão sobre o nosso cuidado e desvelo no atendimento a essa mulher.8
Assim sendo, pensar no contexto filosófico heideggeriano para a construção de uma abordagem à saúde da mulher, em uma esfera existencial, representa fertilizar, ainda mais, a relação entre filosofia e saúde com uma postura crítico-reflexiva, tomando-se por base o conceito de cuidado como acolhimento e condição de possibilidade que favorece uma circularidade compreensiva ao fenômeno da existência.9 Nesse sentido, há de se apropriar de ideias, conceitos, estruturas e teorias para se destinar um olhar mais cuidadoso à gestante na prevenção do câncer do colo do útero.
Desta forma, este estudo teve como objetivo, compreender o sentido da prevenção do câncer do colo do útero na ótica de gestantes.
MÉTODOS
A fenomenologia, como filosofia e método de pesquisa se adequa a investigação de fenômenos importantes para a enfermagem. O método heideggeriano funda-se na hermenêutica. Está relacionado a três componentes: redução, construção e destruição fenomenológica.10
Esse movimento inicia-se com a compreensão vaga e mediana, aquela que emerge dos sujeitos, é dela que brota a questão explícita do sentido do ser e a tendência para o seu conceito.11 Representa, na compreensão das depoentes, a dimensão das situações por elas vivenciadas.
Este estudo, teve como eixo teórico-filosófico a fenomenologia heideggeriana. Foi realizado em um município do interior do Estado da Bahia-Brasil. Participaram voluntariamente 10 (dez) gestantes cadastradas nos serviço de pré-natal, maiores de idade. Foram incluídas, considerando o contexto existencial de cada uma, pois, o que interessava era a vivência de estar gestante e ter realizado o Papanicolaou.
Foram aplicadas as questões de aproximação e norteadoras do estudo que estavam contidas no roteiro previamente testado; como a Senhora compreende a prevenção o câncer do colo do útero? Para a Senhora, que importância que tem a realização do exame preventivo na gestação? O período de coleta dos depoimentos foi de fevereiro a abril de 2012. Técnica aplicada, a entrevista fenomenológica, forma de acesso na qual, o observador dispõe para penetrar nos objetos vividos, sem mascarar o fenômeno que se desvela.12
A construção das unidades de sentido se deu na perspectiva da circularidade hermenêutica heideggeriana. Alicerçada na redução fenomenológica, primeiro componente metódico da fenomenologia heideggeriana. Nesse primeiro momento, foi construído um quadro com a consolidação dos depoimentos, do qual, foram extraídos os elementos ônticos e os ontológicos.
No segundo momento metódico, qual seja, o da construção fenomenológica, em que se processa a compreensão que busca o sentido do ser com base no acolhimento, encontramos o modo de ser das gestantes na prevenção do câncer do colo do útero. O que foi acolhido foi o como as gestantes se mostraram, e como elas se projetavam na prevenção.
No terceiro e último momento, denominado destruição fenomenológica, chegou-se à verdade ôntico/ontológica em que foi possível, a partir da apropriação das estruturas existenciais heideggerianas, tematizar sobre ser e ente, trazendo à tona uma reflexão crítica das possibilidades das relações entre as gestantes, profissionais e serviços de saúde na prevenção do câncer do colo do útero.
Quanto aos aspectos éticos, em atendimento a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que dispõe sobre a pesquisa envolvendo seres humanos, este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) sob o protocolo nº 125/2011 - CAAE nº 0130.0.059.000-11.
RESULTADOS Y DISCUSIÓN
Participaram deste estudo, 10 gestantes, maiores de 18 anos, que já tinham realizado o Papanicolau na gestação em que se encontravam, ou em outra gravidez, eram cadastradas em ambulatório de pré-natal e atendidas por enfermeiras. Foram excluídas aquelas que não realizaram o Papanicolau, menores de 18 anos. Para manter o anonimato, foi utilizado o codinome de flores (orquídea, margarida, violeta, lírio, angélica, girassol, rosa).
Na discussão que se segue apresentamos as unidades de sentido: Ambiguidade na convivência conjugal como situação suscitada na prevenção do câncer do colo do útero em gestantes e inautenticidade nas relações entre profissional e cliente: impacto na prevenção do câncer do colo do útero em gestantes.
A compreensão e a interpretação alternam-se num círculo hermenêutico. A análise compreensiva com base na hermenêutica da facticidade permitiu que fossem desvelados os modos de ser que fundam a experiência do vivido. Há um modo ontológico do Dasein desvelar-se. Um modo fundamental de ser da cotidianidade, denominado de decadência. Neste, a ambiguidade caracteriza o modo em que o Dasein realiza cotidianamente abertura de ser-no-mundo.11
A primeira unidade de sentido: ambiguidade na convivência conjugal como situação suscitada na prevenção do câncer do colo do útero em gestantes, se estruturou na consideração heideggeriana, em que, a ambiguidade não diz respeito apenas ao dispor e ao tratar com o que pode estar acessível, mas, já se consolidou no compreender como um poder-ser, no modo do projeto e da doação preliminar de possibilidades do Dasein. Ela já subsiste na convivência enquanto convivência lançada num mundo.11
As gestantes desvelaram que, ao realizar o Papanicolau, o fizeram numa perspectiva não só de precaução, mas, porque há sempre uma suspeita de que o parceiro possa contaminá-la com alguma Doença Sexualmente Transmissível (DST) a exemplo das falas:
"[...] Porque prevenir não é só fazer os exames. Às vezes a mulher fala: Ah! Eu conheço meu esposo, eu sei que ele não me trai [...] Porém, a gente tem que tá usando preservativo sempre [...] Orquídea."
"[...] Porque tem mulheres que quando o marido chega, quer! quer! e vai... não se lava, aí já é uma forma de vim a doença [...] Margarida."
No depoimento de Orquídea, fica expressa a preocupação de estar sempre vigilante no relacionamento, pois, a qualquer momento pode surgir uma situação de saúde que envolva a sexualidade e isso a deixa na ambiguidade da confiança na convivência sexual.
No cotidiano da ambiguidade, estamos inseridos em uma compreensão mediana e superficial e devido a isso, na convivência, temos a impressão de que conhecemos plenamente o outro, mas, não conhecemos sequer a nós mesmos; estamos sempre no âmbito do outro, somos o que nos ditam, nunca olhamos para nós mesmos. Nunca procuramos saber quem realmente somos o que nos é próprio e aquilo que realmente é nosso.13
A fala de Violeta aponta para a pré-compreensão que ela tem do mundo feminino nos relacionamentos conjugais, pois, há sempre a possibilidade da infidelidade conjugal, e, com ela, o despertar para a prevenção e o tratamento de doenças ginecológicas, este reafirmado pela expressão:
"[...] se cuidar direitinho [...]". "[...] Proteger das doenças, também né? E o preventivo é bom, porque se você tiver com alguma coisa, dá tempo você se cuidar [...] A gente mulher tem que se proteger de tudo né? Aí você tem que se cuidar direitinho [...] Violeta."
Estamos sempre preocupados com a vida dos outros, com o que usam e o que fazem. Então, devido a esta forma ambígua em que se dão as relações no cotidiano, de pensarmos que conhecemos a nós e aos outros, mas no fundo isso não se dá, não podemos distinguir o autêntico do inautêntico. Ou seja, no cotidiano temos a pretensão de que tudo é compreendido e visualizado autenticamente.13 Isto é, aquilo que compreendemos e visualizamos é feito de forma original, única. Mas, apesar de nos empenharmos pela autenticidade, o que temos é uma compreensão mediana, na qual se compreende tudo, porém, de maneira superficial, no modo ambíguo, pois não temos contato com o fundamento, a origem daquilo com que lidamos e nem nos apropriamos das coisas.
O modo da desconfiança que rege muitas vezes a convivência recíproca do Dasein, exprime o caráter de fechamento da afinação da liberdade e do amor.14 O caráter ambíguo da prevenção está associado à sexualidade que diz respeito também, a possibilidade da infidelidade conjugal. A mulher coloca-se muitas vezes atenta, referindo-se ao uso do preservativo nas relações sexuais, tentando estabelecer com o parceiro, uma relação de proteção como foi expresso na fala:
"Prevenir, prevenindo... é, usar camisinha, eu acho assim! [...] tomar cuidado, usar camisinha, conhecer o parceiro. Angélica."
Ela refere à possibilidade de ter indagações que aparecem também na falação, que podem estar fundadas em leituras de material impresso, em informações veiculadas na mídia ou em outras formas de se obter conhecimento, e, a partir desse contexto, ter formulado em seu cotidiano a compreensão de que, a prevenção do câncer do colo do útero envolve situações sexuais, as quais devem ser cuidadosamente analisadas como, por exemplo, a transmissão do HPV.
Portanto, nessa base de informações podem-se originar incoerências e inconsistências que fundam os modos de ser das gestantes na prevenção do câncer do colo útero, fazendo com que, o estado de saúde e de adoecimento, sejam pólos constituintes da totalidade da existência. São modos de existir de certo modo opostos, paradoxais e ambíguos, que se alternam constantemente no decorrer da nossa existência, e às vezes tão próximos, que chegam a se entrelaçar.15 A mulher, mesmo sabendo das possibilidades da infidelidade conjugal e da possível ocorrência de DST, mantém-se com o parceiro, vivenciando a gestação, mas, atenta às peculiaridades da ambiguidade no existir.
A segunda unidade: inautenticidade nas relações entre profissional e cliente: impacto na prevenção do câncer do colo do útero em gestantes foi caracterizada pela inautenticidade nas relações, trazendo impacto na prevenção do câncer do colo do útero em gestantes. Para compreender o modo de disposição de ser-no-mundo e a relação estabelecida com o cuidado, torna-se imprescindível reconhecer que estamos lançados-no-mundo, e estar lançado, é encontrar-se em possibilidade de viver de maneira inautêntica ou autêntica, sem que sejam necessariamente condições morais, mas, existenciais, modos de ser-no-mundo.16
Essa possibilidade, nos serviços de saúde está relacionada tanto a gestante quanto ao profissional que presta o cuidado. Atualmente, com base na ciência, os cuidados à saúde necessariamente passam pelo crivo dos procedimentos metodológicos que deve ser passível de comprovação e controle, e, talvez, por ter ocorrido a metodização dos cuidados à saúde, estamos cada vez mais, expostos às relações inautênticas.17
A condição de inautenticidade identificada neste estudo apontou para o processo de desconhecimento e desinformação que a gestante tem a respeito da importância da realização do Papanicolau, pois, apesar de ser atendida por profissionais de saúde, em serviço de atenção básica que preconiza a prevenção de doenças e a promoção da saúde, os depoimentos desvelaram que as gestantes com os codinomes Girasssol e Rosa, apesar de realizarem o exame, não sabem sobre a sua importância.
"[...]A gente não sabe exatamente prá que se faz o preventivo. [...] Que a gente também não sabe direito o que é o câncer do colo do útero [...] A gente não sabe o que é ! Girassol."
"[...] Na minha opinião, porque o preventivo esclarece vários tipos de enfermidade (cabeça baixa, risos) Oh! Eu não sei explicar direito. Rosa " .
"[...] Muitas vezes, eu acho que a informação ainda é muito pouca, é, principalmente para as gestantes. Pede para fazer o preventivo, e não explica o porquê que tem que fazer o preventivo. [...] Eu nunca tinha feito o preventivo, né? Foi a primeira vez que eu fiz, justamente por causa da gestação, que foi quando a enfermeira solicitou. Lírio."
Nestes depoimentos, compreendemos que o estado de inautenticidade alcança também o encontro gestante/profissional nos serviços de saúde, pois, nessa condição a gestante, ao ser atendida, se vê sem possibilidades de compreensão da importância da realização do Papanicolau, referindo inclusive que há a solicitação do exame, mas não se explica a necessidade e a importância da sua realização. O ser-no-mundo é determinado pelo com, pois o mundo é sempre compartilhado com os outros. O mundo do Dasein é um mundo compartilhado. O ser-em, é, ser-com os outros, o que caracteriza a co-presença.11
Mas, nos depoimentos supracitados, foi desvelado que, a co-presença, o encontro gestante e profissional de saúde se deu no modo da inautenticidade, podendo representar a fragilidade do compromisso profissional de ser-com a gestante. As gestantes deixaram explícitas a deficiência e a indiferença que caracterizou a convivência com a profissional de saúde na prevenção do câncer do colo do útero quando diz:
"[...] Pede para fazer o preventivo, e não explica o porquê que tem que fazer o preventivo [...] Lírio."
Portanto, imprescindível é a adoção de proposições inovadoras no cotidiano assistencial, com vistas ao fortalecimento do diálogo no processo de trabalho e de acolhimento à mulher que busca a prevenção do câncer do colo do útero. Para se estabelecer um diálogo, há de se levar em conta a importância da escuta. Sem ela, é impossível estabelecer uma relação de abertura para com o outro.
A falação é a condição para o fechamento do Dasein para o mundo, pois ela encobre aquilo que é primordial do ser humano, a sua própria existência. Encobre uma relação de respeito e acolhimento, pois, a falação é característica de uma conduta inautêntica, ao passo que o diálogo é uma condição de possibilidade pra se pensar e executar um cuidado à saúde que valorize a existencialidade.9
Portanto, o cuidado que a mulher realmente carece, não está em ouvir, e sim em ser ouvida, a partir de sua abertura para a existência, do seu vivido, e do "como" ela compreende a prevenção do câncer. 8 Compreendemos que ao realizar o exercício da escuta na prevenção do câncer do colo do útero na gestação, possivelmente, poderão ser afastados os velamentos, e, nessa direção serem desveladas as estruturas ônticas/ontológicas do fenômeno dessa prevenção, contribuindo para que profissionais e serviços de saúde possam oferecer com integridade, a assistência tão desejada por todos.
Em conclusão, a abordagem fenomenológica heideggeriana permitiu visualizar um horizonte de compreensão, sobre a facticidade de vivenciar a prevenção do câncer do colo do útero na voz de gestantes. A despeito da ambiguidade, as depoentes demonstraram que realizam o Papanicolau não só na perspectiva da prevenção do câncer do colo do útero, mas, também, por solicitude à criança e para identificar e se proteger de situações conjugais vinculadas a sexualidade que possam trazer para elas, a possibilidade de infecções sexualmente transmissíveis.
Desse modo, pelos depoimentos presentes nesta investigação, vislumbrou-se a possibilidade de uma relação direta do cuidado inautêntico com a incidência do câncer do colo do útero tão alta em nosso país, haja vista, que as algumas gestantes relataram, que não sabem o objetivo da realização do Papanicolau na gestação.
Ao compreender que os discursos apontavam para visibilidade de uma relação profissional/mulher que se dava, na maioria das vezes, na inautenticidade, vários questionamentos surgiram: como poderemos contribuir para mudanças de atitudes na academia e nos serviços? O quanto estamos no esquecimento das relações autênticas no cuidado? O que fazermos para melhorar esse modo de ser inautêntico nas relações?
Portanto, realizar o cuidado de enfermagem numa perspectiva fenomenológica não significa "organizar" a existência, pautando o cuidado, em normas e rotinas pré-estabelecidas, porque o problema não é a rotina em si, mas, o modo como ela vai sendo desenvolvida, na perspectiva de um fechamento em que não há espaço para questionamentos. Tudo vai se naturalizando, e, esse naturalizar é o que impede um desvelar, para que possamos compreender as situações de saúde e adoecimento como possibilidades humanas.
É por meio da abertura para o cuidado autêntico, que surge a possibilidade para um olhar de compreensibilidade para as mulheres e as atuais políticas públicas de saúde que envolve a prevenção do câncer do colo do útero. Deve-se, pois, avançar, para o estabelecimento do encontro existencial com a gestante, de modo a interpretar os seus discursos na realização do Papanicolau, pois, o discurso é uma articulação do compreender e pode favorecer para ela, a compreensão do exame, como algo necessário a manutenção da sua saúde.
Sendo assim, por meio da re-avaliação paulatina do modelo biomédico que se aplica no cuidado à saúde, é provável emergir possibilidades de se realizar um cuidado que prime por um modelo estruturado na autenticidade, aquele em que, a pessoa que é cuidada, tem a liberdade de abrir espaços para questionamentos que a despertem para compreensão do objetivo do exame Papanicolau.
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Recibido: 2016-02-29.
Aprobado: 2016-03-01.
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