Manifestações e Concepções de Doença Mental entre Indígenas

REFLEXIÓN Y DEBATE

 

Manifestações e Concepções de Doença Mental entre Indígenas

 

Manifestaciones y concepciones de enfermedad mental entre indígenas

 

Manifestations and conceptions on mental disease among indigenous people

 

 

Diomedia Zacarias Teixeira; Nelson dos Santos Nunes; Rose Mary Costa Rosa Andrade Silva; Eliane Ramos Pereira

Universidade Federal Fluminense (UFF). Brasil.

 

 


RESUMO

Introdução: costuma-se pensar na loucura sob a lógica do pensamento biomédico e do predomínio da razão sobre sensibilidade e afeto. Entre indígenas, a saúde é determinada pela forma como o ser humano se integra à natureza. O comportamento individual, social e espiritualmente esperado cumpre essa integração sendo a doença o fenômeno que a nega, provocada pela ação dos espíritos maus da natureza ou pela ação humana.
Objetivo:
propor uma reflexão sobre as concepções indígenas de doença mental e suas manifestações.

Métodos: estudo reflexivo a partir da experiência dos autores com populações indígenas, pesquisa e leitura de livros, monografias e artigos de periódicos nas bases de dados LILACS e na biblioteca Scielo, além de consulta à legislação nacional e internacional, entre setembro e novembro de 2015.
Conclusões: é necessário às práticas de cuidados em saúde ampliar o foco de conhecimento dos profissionais sobre saúde e doença para além da dimensão biológica, tendo em conta diferentes valores e conceitos que são universais nas sociedades ocidentais.

Palavras chave: população indígena; saúde das populações indígenas; doenças mentais.


RESUMEN

Introducción: frecuentemente se piensa en la locura bajo una lógica del pensamiento biomédico y el predominio de la razón sobre la sensibilidad y el afecto. Entre los indígenas, la salud está determinada por la forma en que el ser humano es parte de la naturaleza. El comportamiento esperado individual, social y espiritual reúne esta integración y la enfermedad es el fenómeno que la niega, causada por la acción de los malos espíritus de la naturaleza o por la acción humana.
Objetivo: proponer una reflexión sobre las concepciones indígenas de las enfermedades mentales y sus manifestaciones.
Métodos: estudio reflexivo de la experiencia de los autores con poblaciones indígenas, investigación y lectura de libros, monografías y artículos de revistas en la base de datos LILACS y SciELO, y consulta con la legislación nacional e internacional, entre septiembre y noviembre de 2015.
Conclusiones: es necesario para las prácticas de atención de salud ampliar el foco de conocimiento profesional sobre salud y enfermedad más allá de la dimensión biológica, teniendo en cuenta los diferentes valores y conceptos que son universales en las sociedades occidentales.

Palabras clave: población indígena; salud de poblaciones indígenas; trastornos mentales.


ABSTRACT

Introduction: Insanity is frequently thought about based on the logic of biomedical thinking and the prevail of reason over sensibility and affection. Among the indigenous people, health is determined by the way in which the human being is part of nature. The expected individual, social and spiritual behavior reunites this integration and the disease is the phenomenon negating it, caused by the action of evil spirits of nature or by human action.
Objective: Propose a reflection regarding the indigenous conceptions about mental diseases and their manifestations.
Methods: Reflexive study about the authors' experiences with indigenous populations, research and reading of books, monographs, journal articles in the databases LILACAS and SciELO, and consultation of the national and international regulations, between September and November of 2015.
Conclusions: It is necessary, for health care practices, to broaden the focus of professional knowledge about health and disease beyond the biological dimensions, considering the different values and concepts that are universals in other Western societies.

Keywords: indigenous population; indigenous population's health; mental disorders.


 

 

INTRODUÇÃO

Costuma-se pensar na loucura sob a lógica do pensamento biomédico e do predomínio da razão sobre sensibilidade e afeto, atributos que perpassam as relações humanas em qualquer das suas dimensões, onde ideias e comportamentos que destoam de regras e padrões estabelecidos são categorizados pela biomedicina como doença mental. A partir do final da Idade Média e durante o Renascimento, a loucura passou a ser objeto de preocupação na Europa, numa época marcada por inquietudes, quando vícios e defeitos humanos foram estigmatizados como uma espécie de grande desatino, representando o afastamento do homem das virtudes cristãs.1 A existência do louco incomoda porque leva cada homem a lembrar de sua verdade. Dessa forma "... a partir do século xv, a face da loucura assombrou a imaginação do homem ocidental".1 É preciso segregar; é preciso excluir a loucura das cidades e a sociedade do convívio com a incômoda presença do louco.

A esse respeito, apesar do período da Revolução Francesa no final do século xviii ter sido marcado pela disseminação dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, que ressonaram até a primeira metade do século xx, manteve-se num primeiro momento a segregação de indigentes, velhos e loucos e agregaram-se a estes os presos políticos do período do Terror. No entanto, o final desse período inaugurou a apropriação médica do louco, pois a loucura foi alçada à condição de doença mental e, por conseguinte, os loucos passíveis de tratamento médico.

A partir da segunda metade do século xix, o progresso nas pesquisas médicas possibilitou descobertas que levaram à compreensão dos diversos fenômenos da vida, dentre os quais aqueles envolvidos no advento das doenças mentais, cujos estudos não somente buscavam explicar a ocorrência de ideias e de comportamentos a partir da ação de neuroquímicos endógenos, mas também iniciavam a compreensão de intrincados mecanismos psicopatológicos. Assim, a loucura categorizada como doença destaca-se pela dissociação de mente e corpo. Na construção do indivíduo, exalta-se muito mais seu componente mental, enquanto que seu corpo é um arcabouço de sustentação, um "amontoado de órgãos".2

Para os indígenas, seres vivos vegetais, humanos e demais animais e seres não-vivos (rios, montanhas, pedras, estrelas, lua, etc.), todos fazem parte do universo original e foram dotados pela natureza de espíritos que habitam o mundo terreno e o mundo cósmico. O modo como o ser humano se integra à natureza determina a sua saúde. Em contrapartida, a doença é o fenômeno que nega essa integração, podendo ser provocada pela ação dos espíritos maus da natureza ou pela ação humana, através de sopros e encantamentos.

As doenças mentais em indígenas têm origem nos planos físico, mental, espiritual e social. O comportamento individual, social e espiritualmente esperado é o que observa o cumprimento de um código de conduta que emerge de um consenso coletivo mediado pelas lideranças, enquanto que a anormalidade é uma condição que foge aos padrões do comportamento esperado3. Entretanto, um comportamento individual anormal não necessariamente é considerado doença, pois pode representar uma tentativa de ajuste e acomodação frente às situações desorganizadoras da vida física e espiritual, individual ou coletiva.3

Entre indígenas, os sinais e sintomas de doença mental podem se expressar individualmente por isolamento, medo e fragilização da autoimagem, os quais sinalizam a perda do equilíbrio individual entre corpo, mente, espírito e natureza. As doenças mentais também podem se expressar comunitariamente, refletindo a perda do equilíbrio coletivo nas questões relativas às mudanças ambientais, alterações dos papéis sociais, conflitos entre lideranças ou mesmo da não observância ao costume do benzimento da colheita e da pesca antes do consumo, eventos esses que fogem aos padrões de normalidade das práticas cotidianas.

O diagnóstico indígena para as doenças mentais está estruturado numa prática social, pela qual os conhecimentos e conceitos de saúde, doença e cura são incorporados e desincorporados no consenso coletivo, a partir das crenças e saberes individuais, da família, da comunidade e de suas normas de conduta. É no processo consensual mediado pelas lideranças, que o diagnóstico e o melhor itinerário terapêutico são definidos.

A partir da reflexão e da compreensão sobre as concepções indígenas de doença mental e de suas manifestações, os profissionais de saúde poderão construir cuidados preventivos e curativos que congreguem saberes biomédicos e saberes da medicina tradicional indígena.

O presente estudo tem por objetivo refletir sobre as concepções indígenas de doença mental e suas manifestações, a partir não somente do que já foi escrito e publicado, mas da condição de indígena de uma das autoras e de sua vivência com essas situações, enquanto esteve pelo período de três anos, entre 2009 e 2012, como coordenadora de enfermagem da Casa de Saúde Indígena (CASAI), unidade integrante do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.

 

MÉTODOS

Trata-se de uma reflexão fundamentada em estudos teórico-práticos de saúde e de doença mental entre indígenas, onde se buscou enfocar e compreender suas concepções acerca dos aspectos mórbidos e das suas formas de manifestação, bem como a maneira pela qual esses povos manejam os recursos de que dispõem para o diagnóstico, o tratamento e a reintegração social de seus membros. Esta reflexão dá-se a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos4 e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas,5 a qual afirma a igualdade dos povos, o direito a serem diferentes e de assim se considerarem e de serem respeitados como tais, contribuindo dessa forma com a riqueza das civilizações e culturas, as quais são patrimônios da humanidade.5 Como suporte à reflexão, considerou-se a Lei de proteção e direitos dos portadores de transtornos mentais, 6 as diretrizes da Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas7e as recomendações da Carta de Manaus.8 Dessa forma, buscou-se destacar os aspectos considerados essenciais e, portanto, indispensáveis à elaboração de modelos assistenciais de enfermagem em saúde mental.

DESENVOLVIMENTO

Implicações Para a Prática Clínica

A reflexão sobre o comportamento indígena nas alterações mentais permite a compreensão do significado de loucura em contextos multiétnicos e multiculturais indígenas. Antes, porém, requer o conhecimento de suas concepções de saúde, doença e cura, as quais são construídas considerando-se elementos muito além do foco no corpo físico, numa lógica distinta daquela que constitui o paradigma biomédico, modelo dominante no campo da saúde.

O ser humano concebido pelos indígenas integra e interage mais intensamente com a natureza, pois dela possui os elementos essenciais que constituem seu corpo físico e etéreo, componentes indissociáveis. Ambos contêm elementos da natureza: a água compõe o sangue; o ar que respira é um dos "alimentos"; o espírito humano tem a energia do fogo. Essa identidade com a natureza forja o sentimento de pertencimento a ela. Logo, o equilíbrio entre o corpo físico e o corpo etéreo, entre o mundo terreno e o mundo cósmico resulta na saúde. Cabe também ressaltar a importância da territorialidade para os indígenas, pois ela guarda uma relação que transcende a dimensão física. O território tem o significado físico de via de ascensão ao plano cósmico, à origem da criação do mundo e à ancestralidade, ocasião na qual ainda não havia distinção entre os seres e quando todos deveriam ter evoluído para a condição humana, não fossem a inveja e os excessos que impediu muitos seres nessa evolução, como por exemplo, outros animais e seres fantásticos que habitam a natureza. É no território que eles se encontram e se realizam no mundo. "A territorialidade, dadas as características genéticas e genealógicas de formação social na Amazônia, sedimenta crenças, atitudes, valores e ideologias para que comunidades se sintam pertencer, majoritariamente...".9 O conceito de territorialidade reveste-se de fundamental importância para a compreensão do processo saúde-doença indígena, pois nela atitudes e comportamentos são forjados.

Para a biomedicina, um transtorno mental envolve anormalidade do comportamento, entretanto esse conceito segue um outro itinerário sob a lógica da medicina tradicional indígena. Nas sociedades indígenas nem todo comportamento classificado como anormal é considerado e tratado como doença, pois poderá representar um movimento de ajustamento do indivíduo ou um mecanismo de alívio de tensões e ansiedades.3

A natureza e os demais seres que a compõem (seres animais, estrelas e astros, rios, montanhas, florestas e seres fantásticos) reagem à desarmonia produzida pela ação deletéria dos humanos no campo físico e espiritual e às transgressões das regras. Nesse contexto, as doenças não são naturais, biológicas ou hereditárias, mas adquiridas, provocadas e merecidas moral e espiritualmente. 10 Dessa forma, a doença resulta de uma crise provocada pela ação humana, que gera desequilíbrio entre as forças do plano físico e do plano cósmico. A crise é provocada por tudo aquilo que as divindades deixaram fora da Terra e que em decorrência foram vedadas à percepção humana. Pode-se interpretar que tudo o que está fora do plano físico, lá foi colocado pelas divindades para que humanos não tivessem acesso; para que eles não as compreendessem e para que não as dominassem. De outra forma, também lá foram colocadas para que não interferissem negativamente na vida humana9. Transgredir normas sociais e culturalmente estabelecidas significa desafiar e desrespeitar as divindades ou a natureza, quebrando a harmonia estabelecida entre os planos ou tudo o que é mais caro à vida. Um outro modo de produzir doenças é através do "sopro", termo que denota ação de um pajé para provocar doenças nas comunidades, estragando plantações e pessoas.11

O desequilíbrio gerado pelas interferências cósmicas e físicas, que produzem doenças, são significados e ressignificados na cultura e na sociedade. Um comportamento classificado como "anormal" decorre da auto avaliação do próprio indivíduo, do seu grupo social de convívio e daqueles que têm o poder delegado pelo grupo social para declarar ou não situações de "anormalidade". 12 Da formulação do diagnóstico participam a família, os líderes comunitários (Cacique ou Tuxaua, Pajé, Benzedeiros, Ervateiros e outros) e a comunidade. As interpretações divergentes quanto à natureza da doença, bem como quanto o tratamento pela medicina tradicional ou pela biomedicina são negociadas e renegociadas no âmbito comunitário, pois as sociedades indígenas não descartam itinerários terapêuticos produzidos por outros saberes, os quais passam a ser incorporados aos seus, mediante significações que guardem correspondência com a lógica da medicina tradicional indígena. Os quadros psiquiátricos podem ser tratados nas comunidades pela utilização de técnicas da medicina tradicional associadas ao comportamento tolerante da comunidade para com seus membros mentalmente doentes. Na concepção usual, somente quando os recursos e a capacidade da comunidade se esgotam é que o caso pode ser tratado pela aplicação de outros conhecimentos.13 Logo, em contextos indígenas definir anormalidade de comportamento como doença mental demanda a formulação de um diagnóstico, firmado a partir da experiência, constatação, significação, identificação e reconhecimento de um comportamento que desestrutura a harmonia entre o plano físico e o plano espiritual.

Acerca do advento de doenças mentais entre indígenas, é útil destacar que "...ao pensar uma atuação de saúde mental dentro do universo indígena, é necessário problematizar quaisquer classificações psicopatológicas, tendo em vista que são construídas dentro de um contexto sócio histórico específico...."2 Acrescente-se ainda que "...a construção diferenciada da pessoa indígena requer também uma intervenção diferenciada..." .2

Comportamentos "anormais" muitas vezes não estão evidentes para os profissionais de saúde, pois são influenciados por concepções de cunho sociocultural nas comunidades indígenas. Como exemplo, pode ser citado o habitual consumo do Caxiri, tradicional bebida fermentada de frutas, servido nas festas e nas celebrações de ritos indígenas, cujo consumo imoderado leva à embriaguez, estado o qual, segundo crença indígena, viabiliza o acesso ao mundo cósmico, tanto quanto o consumo de paricá, epadu, ayahuasca e outras plantas alucinógenas nativas utilizadas por pajés nos rituais de cura de doenças físicas e mentais. Faz parte da mentalidade ameríndia a percepção de características de pessoalidade em animais e plantas e de sensações não-humanas,9 quando do contato com o mundo cosmológico devido ao estado de transe ou embriaguez. Histórias envolvendo onças, botos, cobras e macacos gigantes fazem parte do imaginário amazônida.

Todavia, o consumo habitual e frequente de bebidas alcoólicas ou ervas alucinógenas não necessariamente são interpretados como desencadeadores de doença mental por dependência a agentes psicoativos, a não ser que violações de normas sociais e culturais sejam cometidas em virtude do uso das mesmas, quando então, após interpretações e reinterpretações no âmbito da comunidade, um comportamento "anormal" é declarado como doença mental, passível de tratamento pela medicina indígena ou mesmo pela biomedicina.

Daí a importância dos profissionais de saúde interagirem sem preconceitos étnicos e culturais e em conhecerem os processos que determinam comportamentos "anormais", pois essas situações ficam mais claras quando os conhecimentos acerca deles são construídos pela troca dos saberes da medicina tradicional indígena e da biomedicina, fundada no diálogo e no respeito entre seus representantes.3

A quebra de outras normas sociais e culturais, tais como o consumo de alimentos não benzidos, a inobservância aos ritos de iniciação de jovens e o resguardo de gestantes, podem ser consideradas ameaçadoras da ordem social cosmológica, trazendo vulnerabilidades e desajustes individuais e coletivos, operadores do medo e determinantes do isolamento do convívio comunitário.

Coletivamente, o confronto por terras reveste-se de forte significância no desencadeamento de doenças mentais em indígenas, porque envolve o conceito de territorialidade. A perda do território, muito além da ruptura da relação com o ambiente, remete à perda do referencial de vida e a desestrutura da ordem social e cosmológica, acarretando numa fobia social, que pode guardar relação com atitudes de isolamento, recolhimento e mutismo ou mesmo sentimento de desespero, que exacerba comportamentos de hostilidade alo-dirigida ou autodirigida, fato este que em parte explica a elevada incidência de suicídios entre indígenas na Amazônia Oriental.

O advento da "anormalidade" como doença repercute negativamente no cotidiano da vida individual e comunitária, pois o convívio domiciliar e comunitário fundado em relações sociais bem definidas de tarefas e de compartilhamento dos recursos encontra-se desestruturado. Assim, as repercussões sociais, econômicas e espirituais da doença são profundamente marcantes e evidentemente indesejadas, por ameaçarem o bem-estar individual e da comunidade.

Identificar os padrões de normalidade e anormalidade, bem como os sinais e sintomas de transtornos mentais definidos pelas comunidades indígenas é um difícil exercício que se impõe aos profissionais da saúde para a formulação do diagnóstico no modelo biomédico, fato este que se traduz pela falta de cuidado, na medida em que impõe seu conhecimento ao do outro, menosprezando suas práticas e seus saberes por serem qualificados como primitivos e sem fundamento científico. O fenômeno psíquico compreende elementos de interação entre o plano físico e o plano espiritual, cujo desequilíbrio altera a saúde mental, deixando o indivíduo vulnerável à ação de outros espíritos e outros seres da natureza.3

A elaboração do cuidado no processo da cura deve considerar a participação da família e das lideranças comunitárias, especialmente do pajé.

Levando-se em conta que a declaração de um estado mórbido entre indígenas é uma construção social e cultural, faz parte da regra social a família indígena acompanhar seu doente, quando da internação em uma unidade hospitalar. Sobre a instituição do plano terapêutico, cumpre ressaltar que os profissionais de saúde:

"... devem considerar que o ambiente cultural contribui para a configuração dos transtornos mentais, assim, deve-se conhecer o contexto cultural do indivíduo que é o ponto de partida para a construção dos planos de ação. O foco dessas ações não é meramente classificar as doenças, mas conhecer as particularidades socioculturais e as experiências que determinam os significados dos sintomas" 3

Este fato habitualmente surpreende os profissionais de saúde, causando estranheza a eles, visto que a presença de acompanhantes no ambiente dos hospitais públicos está condicionada à variável idade do doente menor que 18 anos ou maior que 59 anos, ou ainda independente da faixa etária à qual pertença, quando seu estado geral assim exigir.

Considerando a ocorrência desse processo, destaque-se que a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas,7 estabelece em suas diretrizes gerais o apoio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) 14 a partir da desativação dos hospitais psiquiátricos, com a missão de construir e operar uma rede de cuidados de saúde mental em seu território, em consonância com a Reforma Psiquiátrica instituída nos anos noventa do século XX.

Visando atender às necessidades do usuário por cuidados de saúde, os CAPS passaram a desenvolver o Projeto Terapêutico Singular (PTS), um conjunto de propostas e condutas articuladas de seus integrantes para atender a usuários e famílias que estejam vivendo situações de transtornos mentais mais graves e difíceis, com a finalidade de promover a autonomia e a inclusão social dos mesmos. O PTS não se estrutura unicamente no modelo biomédico do diagnóstico e do uso de psicofármacos, mas estende aos aspectos sociais, culturais e demais aspectos que influenciam a vida do usuário a mesma importância e o mesmo peso daqueles. Em seus modos de ação estão previstas a construção e a articulação dos diversos recursos loco-regionais para a intervenção terapêutica.

No contexto da região do Alto Rio Negro na Amazônia Brasileira a multiculturalidade de povos indígenas, sua distribuição no território em comunidades ou aldeias, especialmente ao longo das calhas dos rios da região, a grande distância dessas comunidades da sede dos municípios aos quais pertencem e a limitação dos deslocamentos pela via fluvial são fatores que exigem dos profissionais do CAPS alta capacidade de articulação e mobilização dos recursos de que dispõem para a realização do PTS como estratégia de abordagem e construção de soluções que envolvam usuário, familiares, integrantes das comunidades, equipes de saúde avançadas e Agentes Indígenas de Saúde (AIS).

No tocante aos cuidados como desdobramento do PTS, destaque-se que eles certamente serão significados pela cultura e pela sociedade indígena envolvida, no entanto, antes de tudo eles representam o reconhecimento da alteridade, na medida em que considerem os conhecimentos e comportamentos indígenas, que não somente permeiam a interlocução como tornam viável a realização do cuidado. Dessa forma o cuidado, exprime o senso de pertencimento à humanidade.15

Portanto, em contextos indígenas, é necessário considerar a participação da família e da comunidade na concepção e na implementação da proposta terapêutica, visando a obtenção da cura física e espiritual, em razão do processo saúde-doença ser uma construção social e cultural que considera ambas as dimensões.

 

CONCLUSÕES

A ocorrência de doença mental em indígenas requer dos profissionais de saúde a compreensão desse processo de adoecimento em contextos ameríndios, o qual envolve modos de relacionamento do indivíduo ou da comunidade com os demais componentes do mundo terreno e com o mundo etéreo. A participação da família e da comunidade na declaração do diagnóstico e realização do tratamento para a obtenção da cura reflete a estrutura e a dinâmica social permeada por concepções e práticas culturais.

Se quisermos entender a pertinência de valores e conceitos do outro nas práticas assistenciais de saúde, necessitaremos contextualizá-las em sua sociedade e cultura, ampliar o nosso foco de entendimento do processo saúde-doença para além da sua dimensão biológica e considerarmos que aquele processo sofre influências de crenças, conceitos e costumes impregnados de valores éticos e morais, do indivíduo e da coletividade. Apesar de existirem alguns entraves para as equipes lidarem com a diversidade, a construção do PTS pelos profissionais do CAPS precisa levar em conta a diversidade sociocultural indígena. Portanto, é necessário que os profissionais de saúde sejam capacitados para o acolhimento a escuta e o diálogo, a fim de lidarem com a ocorrência de transtornos mentais em indígenas, cuja concepção de suas causas e expressões diferem do modelo biomédico dominante; é necessário que se considerem as crenças e os valores culturalmente estabelecidos nos grupos étnicos envolvidos. Também se faz necessária a integração do CAPS nas ações planejadas nas comunidades, a fim de que o PTS se torne efetivo.

 

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Recibido: 2015-12-28.
Aprobado: 2016-05-23.

 

 

Diomedia Zacarias Teixeira. Especialista em Saúde Indígena e em Promoção da Saúde. Enfermeira Autônoma. Dirección electrónica:diomedia39@yahoo.com.br

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